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Minas Gerais, há uns 60 anos – dois livros que se completam






"Fogo, Cerrado!”

Era tempo de construção de Brasília, no governo JK... E também de estradas que levavam para lá. Entre elas, uma da então capital, Rio de Janeiro, para a nova, Brasília, que ainda não tinha sido inaugurada.

E essa estrada cortava o Cerrado mineiro, num trecho a dominado por fazendeiros-coronéis, que não tinham ainda assimilado bem o fim da escravidão. Mandavam e desmandavam. Cometiam crimes diversos, seus jagunços matavam com sadismo os desafetos do patrão, que sentiam-se donos dos empregados e, especialmente das empregadas e suas filhas transformadas em objetos de prazer.

Muita violência!

Que transformações ocorreriam com a passagem dos engenheiros e operários que construíram a rodovia? Como isso interferiria no sistema semifeudal, de autoridade praticamente absoluta dos senhores da terra, com a cumplicidade da polícia, da justiça, da Igreja?

E se trabalhadores que trabalhavam na estrada resolvessem parar por lá? E se, além de se apossar de um pedaço de terra para morar e – pior! – conhecessem direitos trabalhistas e tivessem até um líder “comunista”?

Seria possível mandar esse pessoal de volta para o Nordeste, de onde vieram quase todos os trabalhadores? O clima era pesado.

Marcos Wilson Spyer Rezende viu tudo isso. Nascido em Patos de Minas, era adolescente na época. Começou a escrever “Fogo, Cerrado!” em 1962 e só concluiu no ano passado. Com frases curtíssimas, “carregadas de raiva e de erotismo”, em que “o Cerrado é o personagem principal dos conflitos entre fazendeiros, jagunços, retirantes, roceiros, trabalhadores na construção, meeiros, carvoeiros e padres”, está escrito na orelha.

Com belas ilustrações de Bruno Liberati (artista dos melhores, recém-falecido), ele tem um linguajar que lembra Guimarães Rosa. Afinal, são da mesma região. No início, parece que a leitura será demorada, um pouco difícil até, pois não é fácil incorporar na cabeça, logo de cara, aquela forma de falar e o palavreado que parecem ser de outro idioma. Requer atenção. Mas depois a gente pega o embalo, entra no clima, e as 360 páginas deixam de ser um desafio, passam a ser engolidas com celeridade.

Lendo este livro, fui me lembrando de um que tenho “na gaveta”. “Chegou a tua vez, moleque!” se passa na mesma época, mas em outra parte de Minas Gerais, ao sul de outra obra de JK, a represa de Furnas. Região economicamente em decadência, sem alternativas de trabalho e estudos, era área de expulsão de moradores, que se viam quase forçados a migrar. Não atraía migrantes. Seus moradores é que se tornavam migrantes.

Não resisti... Mandei os originais para Marcos Wilson, ele leu e se espantou: “Os dois livros se complementam”. Mostram duas realidades de uma mesma época, sob as mesmas influências, os mesmos acontecimentos nacionais e mundiais chegando de modo meio confuso à população, só que com as devidas diferenças culturais e complexidades regionais das muitas das que caracterizam Minas Gerais. Minas são muitas, mas tem uma unidade, um DNA muito particular. Coisa complexa. Mineiros sabem disso.

Mas sobre o meu livro (que vocês não vão encontrar em lugar nenhum) eu conto na próxima postagem, porque o texto ficaria muito comprido...

“Fogo, Cerrado!” foi publicado (mas muito mal divulgado) pela Geração Editorial.

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Mouzar Benedito é escritor, jornalista, geógrafo, autor de dezenas de livros, entre eles Palavra de Caipira, editado pela Limiar.

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