Por Nete Moraes
Quando a prima Bilina me convidou para escrever suas memórias, em 2012, ela completara 62 anos. De imediato concordei como um presente. Afinal, seria minha estreia literária - em parceria com ela, a protagonista: mulher guerreira, sábia, carismática, dona de um legado inspirador em vida, lutas, conquistas, superação e bem-viver.
No fundo, me instigava poder registrar e perpetuar a trajetória de minha heroína.
Ela sugeriu a coleta do depoimento de amigos, familiares, companheiras(os) de militância e colegas de profissão. Queria compartilhar reflexões filosóficas sobre sua trajetória de vida, desafios, experiências de superação e resiliência.
Em tempos de Internet, o momento era de transformação dos processos editoriais na produção do livro impresso. A possibilidade do livro eletrônico ficaria para um outro momento.
"Na medida em que relatava suas tantas vidas, convertidas em orações, parágrafos, páginas e capítulos, sentia-se empoderada, como se pudesse prolongar a vida, eternizar-se".
Oito anos se passaram até a conclusão de todo o texto do miolo do livro: as entrevistas em forma de depoimentos, a pesquisa para contextualização histórica, conversas, mensagens, crônicas e poesias que a prima escrevera inspirada em sua fase mais recente.
Os depoimentos tecem as lutas e conquistas - coletivas e individuais - desafios, remontam fragmentos de sua vida familiar, militância e trajetória profissional. Resgatam dilemas existenciais, estratégias para superar doenças, dores, desenganos, e ainda, como conquistou prosperidade, qualidade de vida, harmonia familiar e realizou sonhos.
Em nossas conversas, ela avaliava as tantas fases da vida e os frutos que estava colhendo como resultado de tudo que plantou ao longo de sua trajetória.
A vida toda enfrentou desafios. Nas décadas 1970 e 1980, atuou como agente de transformação. Em pleno período de ditadura no Brasil, foi liderança expressiva no Movimento Contra a Carestia; participou das lutas de mulheres nas fábricas e nos bairros, por creches, escolas, postos de saúde e outras melhorias. Era exemplo de valorização das mulheres da periferia, ainda hoje esquecidas pelos governos. Ela teve acesso à universidade, formando-se profissional competente.
As tantas Severinas, nordestinas, mulheres de periferia, "sabem que foram verdadeiras guerreiras ousar fazer o que Severina fez", sublinha Ana Martins, amiga histórica, leal companheira de muitas décadas de lutas e militância.
Severina revela que nasceu para servir. Trabalhou 44 anos, dos quais 26 no serviço social público. Sentia-se vitoriosa por conseguir dar formação para os filhos e ser exemplo para os netos.
No final de 1997, foi diagnosticada com câncer de mama. Começava uma luta que durou 24 anos vencendo a doença e buscando a cura.
Após tantas terapias alternativas, descobriu sua força interior, e passou e encontrar na espiritualidade a energia.
A preparação interior – emocional, psicológica e espiritual - tornou-se um hábito, regado a leituras, meditação, ioga, reuniões familiares e com os amigos. Com simpatia, sotaque pernambucano e um sorriso encantador, sabia a importância de cuidar da aparência para elevar a autoestima.
Depois de aposentar, Severina e o companheiro Osvaldo compraram uma pequena chácara em Capela do Alto, município da Grande Sorocaba, interior paulista. "Na roça", como diziam, realizaram o sonho de retornar à terra e viver perto da natureza.
Sempre que recebia alta das sessões de quimioterapia no hospital do Servidor Público Estadual, na capital, apressava-se em pegar a estrada e retornar para o "mato", referindo-se à chácara. Perto da natureza, ela fortalecia sua energia vital em contato com a terra, seja para plantar alimentos, flores, respirar o ar puro do campo, da roça, e relaxar brincando com as netas. Em uma de nossas tantas conversas, dizia: "Prima, eu me sinto tão bem, iluminada, liberta, contemplada por uma força cósmica, que me faz abrir, a cada dia, uma janela de possibilidades de bem-viver, valorizando cada instante da vida".
Todas as etapas de produção do livro contaram com o trabalho de profissionais e a colaboração de amigos, comprometidos com seu propósito. Publicado pela Editora Limiar, o livro foi custeado com investimento familiar.
O lançamento do livro foi cancelado em razão da pandemia. Fragilizada pelo avanço do câncer e longos períodos de quimioterapia, Severina prosseguiu com o tratamento no Hospital do Servidor Estadual, na capital paulista.
Vivia intensamente cada dia, apesar de isolada com o marido, na chácara. Tomou as duas doses da vacina contra o Covid-19, e utilizou as redes sociais para seguir se posicionando em campanhas pela cura do câncer e por justiça social no país arrasado. Nos últimos meses, suas postagens eram como despedidas. Depois de vacinada, sempre com o livro em mãos, presenteou amigas e amigos. Sentia-se revigorada por poder compartilhar sua história. Deu entrevistas para jornais da região e recebeu homenagens da gestão municipal de Capela do Alto, por suas ações sociais e postura cidadã.
Em outubro de 2020, sofreu um AVC, que a fez perder a fala. Após tratamento, recuperou-se, mas sentia-se exausta com tanta dor e sofrimento.
Contudo, enquanto respirava, soube fazer a diferença sempre grata por suas tantas vidas.
Em seus últimos dias, no leito do hospital, enviou mensagens carinhosas para entes amados, como tia Alaide, minha mãe. Serenamente, acariciou a filha, os filhos. Em cada vídeo-chamada, já sem fala, conseguiu despedir-se, com lágrimas e sorriso, das noras, netas e netos e do genro. O companheiro Osvaldo esteve ao seu lado até o fim.
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Nete Moraes é jornalista e autora do livro Tantas vidas, Severina, em que transcreve o depoimento e história de vida de Severina Acioli, militante de movimentos populares em São Paulo, recentemente falecida após lutar por mais de 20 anos contra o câncer.
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