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Por trás dos números, vidas!


Relatório da Fenaj apontou 169 mortes de jornalistas por Covid19 até março de 2021, com tendência de alta




Por Norian Segatto

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Texto publicado originalmente no Jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, edição 409, fevereiro de 2021, e atualizado para este blog






Passava um pouco do horário do almoço daquela sexta-feira quando ansiedade e angústia cederam lugar ao desespero. Às 14 horas do dia 19 de junho de 2020, Laura Neworal Fava recebia a notícia de que sua filha, a jornalista Letícia Fava, de 28 anos, havia falecido por Covid19, pouco menos de dois meses após ter sido diagnosticada com a doença. “Não há como compreender essa fatalidade a não ser imaginar que esse era o destino e a missão dela”, diz Laura, sem esconder a emoção ao falar da filha, vítima precoce de uma pandemia que ceifa milhares de vidas, entre elas centenas de profissionais de imprensa.

Pesquisa realizada pelo Departamento de Saúde da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) revelou que desde o início da pandemia de Covid19 no Brasil até o final de março de 2021, pelo menos 169 jornalistas (da ativa e aposentados) perderam a vida depois de contrair a doença. Após essa data outros e outras colegas se foram.

Dados que, entretanto, podem ainda não refletir a crua realidade das mortes na categoria, pois não existe um mecanismo oficial de registro dos casos. A pesquisa foi realizada por meio de buscas em jornais e blogs de todo o país, informações coletadas com os sindicatos de jornalistas de cada estado e relatos vindos diretamente de amigos e parentes das vítimas. “É plausível imaginar que tais informações estejam subnotificadas, o que leva a crer que esse número possa ser ainda maior”, conclui o documento produzido pela Federação e que se encontra disponível no site da Fenaj.


Números assustadores

Até o final de janeiro de 2021, o mundo registrava 100.270.602 casos, com 2.157.355 mortes. Dessas, 220.161 no Brasil, ou seja, apesar de representar pouco mais de 2% da população mundial, o país respondia por mais de 10% dos óbitos. Se o número salta aos olhos, perceber que em menos de dois meses somaram-se mais de 150 mil mortes é estarrecedor. No fechamento desta edição, o Brasil registrava quase 350 mil óbitos por Covid19.


Pela média, o ano de 2020 registrou 8,5 mortes por mês; em 2021, no primeiro trimestre, atingiu-se a marca de 28,6 mortes, praticamente uma por dia. No início de abril, mais cinco mortes ocorreram antes da Páscoa, elevando o total de vítimas da Covid-19 e da necropolítica do governo federal para 169 casos, tornando o Brasil o país com maior número de jornalistas mortos por Covid-19 no mundo, superando o Peru, que registra pouco menos de 140 mortes segundo levantamento do Press Emblem Campaign.




Tô meio gripado


Joaquim Junior

Se por si só o gigantismo desses números choca, eles ganham contornos de tragédia quando se desnudam por trás deles nomes, rostos e vidas perdidas. Assim foi com Marcello Bitencourt, da Rádio USP, com José Paulo de Andrade, da Bandeirantes, Joaquim Junior, Zildetti Montiel, Orlando Duarte, Vanusa Torchi, cinegrafista, Letícia Fava e tantos outros. Uma doença que ataca pessoas de todas as idades.

Uma dessas muitas vítimas foi Fernando Sandoval, de 78 anos. Ex-atleta Olímpico, ganhador de uma medalha de prata em natação no Pan Americano de Winnipeg, no Canadá, aos 25 anos, Sandoval se tornou jornalista com uma brilhante carreira. Sua condição de ex-atleta não o salvou da doença, faleceu no dia 1º de maio de 2020.



Orlando Duarte

Aos 88 anos, o experiente jornalista Orlando Duarte sofria de várias comorbidades, dois aneurismas no coração, desvio de aorta e Alzheimer, segundo conta Conceição Duarte, com quem esteve casado por quase 40 anos. Ao falecer, três dias antes de completar 89 anos, o eclético jornalista esportivo estava com 49 quilos e bastante debilitado. “No atestado de óbito, a causa da morte está como Covid19, mas pelo estado de saúde dele não posso afirmar se ele morreu ´de´covid ou ´com covid”, afirma Conceição.


Se Orlando Duarte já apresentava um quadro de saúde grave ao contrair a doença, o mesmo não se pode dizer de Joaquim Junior, de 38 anos, jornalista proprietário da Folha Regional, de Ribeirão Branco (SP). “Nós éramos vizinhos e ele possuía uma rádio comunitária. Aos 16 anos pedi para trabalhar com ele porque eu era louco por jornalismo, foi meu primeiro emprego. Depois me mudei para Curitiba onde me formei. Assim que o Joaquim soube, me convidou para ser colunista do jornal dele”, conta Ricardo Alcântara, que lembra com carinho do amigo e primeiro chefe.

“A morte dele foi um choque, ele tinha acabado de ganhar um processo contra a Câmara de Vereadores, estávamos comemorando e discutindo como o jornal iria cobrir as eleições. Ele se queixou: pô, tô meio gripado. Dias depois liguei para ele e fui informado de que havia sido internado, no dia seguinte foi intubado e faleceu na sequência, tudo muito rápido”, se recorda Ricardo. “Ele não tinha nenhuma doença, andava sempre de bicicleta, era um cara saudável, a morte dele pegou todo mundo de surpresa, houve uma carreata na cidade em sua homenagem”, conta o amigo. Joaquim Junior deixou mulher, uma filha adolescente e um menino.


Letícia Fava

O caso de Letícia Fava mostra que o vírus não afeta apenas idosos, como se fazia crer no início da pandemia. Aos 28 anos, Letícia trabalhava há quatro na Universidade do Futebol, em Jundiaí, como analista de mídias digitais, mulher de personalidade forte, exigente consigo mesma e com os colegas, características destacadas tanto por sua mãe, Laura, como por João Paulo Medina, idealizador e presidente da Universidade. “Como trabalhamos muito com EAD, sempre houve bastante trabalho remoto, que se acentuou na pandemia, mas a Letícia fazia questão de ir algumas vezes por semana no escritório para cuidar das coisas, era uma pessoa muito dedicada ao trabalho, foi um enorme baque para nós a notícia de sua morte”, afirma Medina.

“Meu marido, minha filha mais nova e a Letícia contraíram covid. Meu marido fez a quarentena de 14 dias, na menor a doença foi leve, mas na Letícia a febre não passava. Com os exames descobriu-se que ela estava com fibrose pulmonar como consequência da covid. Ela ficou 25 dias internada na UTI, nos falávamos todos os dias, na véspera da morte, os rins pararam de funcionar. Ela era uma moça cheia de vida, de planos e viveu intensamente sua breve passagem”, lamenta Laura.


Necropolítica


A maior responsável pelo Brasil se tornar o segundo país em que a pandemia mais mata é a necropolítica negacionista do governo Bolsonaro, mas empresas de comunicação também têm sua parcela ao expor trabalhadores a condições não seguras e, muitas vezes, se omitir em fazer uma contundente crítica e denúncia dos crimes governamentais.

O presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Paulo Zocchi, informa que “em 16 de março de 2020, o Sindicato encaminhou para as empresas o primeiro documento com medidas para serem adotadas em todas as redações visando preservar a saúde da categoria frente à pandemia. Medidas como colocar em trabalho remoto o maior número possível de pessoas, principalmente as que tivessem mais de 60 anos ou alguma comorbidade, evitar deslocar equipes para fazer matérias na rua onde houvesse aglomeração, testagem em larga escala etc. Em um primeiro momento, algumas empresas se negaram a discutir esses protocolos, em alguns casos, como na Record e na CNN, o Sindicato encaminhou denúncia ao Ministério Público. Creio que essas atitudes por parte do Sindicato ajudaram a categoria a se prevenir melhor, mas, infelizmente, várias empresas demonstram grande resistência em investir mais em saúde e expõem os trabalhadores e trabalhadoras a riscos continuados”.

Enquanto o governo genocida patrocina a morte e age com descaso pela vida, cabe a cada trabalhador, junto com sua entidade de classe, zelar por sua saúde e segurança e a de seus colegas. Às milhares de vítimas da pandemia, aos profissionais de imprensa que arriscam diariamente a vida (e os que ficaram pelo caminho), aos familiares que sofreram perdas irreparáveis, nossa solidariedade e alerta: enquanto esse governo perdurar, não haverá eficaz combate à pandemia.

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